Em determinada fase do livro “As Travessuras da Menina Má”, Ricardito, o personagem principal, traduz os contos de Tchekhov de modo apaixonado. Resolvi naquele momento que minha próxima leitura seria essa. Adoro literatura russa. É pesada, densa, profunda. Tenho um amigo que diz que para ler literatura russa, nossa mente deve estar previamente preparada. Não pude discordar. Literatura russa não é propriamente uma leitura de férias, daquelas que se lê para distrair ou passar o tempo. É um pequeno empurrão para aqueles que gostam de mergulhar em si mesmos, em seus devaneios e conflitos mais secretos.
Diferentemente de Dostoiévski, Tchekhov aborda situações mais cotidianas, textos mais curtos, de linguagem apurada e suave. Seus personagens são cidadãos comuns, feios, doentes, solitários. Mas nunca vazios. Em “Uma crise”, três amigos saem numa noite, em busca de diversão e prostitutas. Vassíliev, estudante de direito, é acometido por um turbilhão de sentimentos antagônicos ao desejo que sentem os demais. Compaixão, repulsa, zelo, raiva. Em meio a doses de vodca que
bebe, na tentativa de igualar-se a seus amigos, que vivenciam os momentos com tamanha intensidade, esse homem de alma atormentada não consegue se desligar da crise de consciência que lhe corrói o espírito. Passa a noite e os dias que se seguem remoendo os mesmos pensamentos e conflitos, incessantemente. Tchekhov faz uso do distúrbio da mente para justificar a sensibilidade exarcebada, a preocupação com o outro, os questionamentos sobre os valores morais e éticos. No que ele mesmo caracteriza como talento humano. “ Um intuição sutil e magnífica para a dor em geral. A dor alheia enervava-o, deixava-o exaltado em estado de êxtase.” Na dor desse personagem sou cativada para sempre por Tchekhov, por penetrar com tanta sutileza nos dramas humanos.
“O Beijo” aborda a solidão de um jovem soldado que é beijado por engano em uma festa. Essa fantasia que o move, conotando em seus pensamentos a pureza de uma companhia, de um amor quem sabe, de emoção em uma vida fria nos comove.
Em todos os contos podemos sentir a sutileza de sua graça, de sua escrita apaixonante, provocadora, que instiga nossos melhores pensamentos e também nossos sentimentos mais perversos e sombrios. É, sem dúvida, um instrumento de autoconhecimento. Maravilhoso.
Recomendo....O Beijo e outras histórias. A.P. Tchekhov