Brincava de boneca quando sentiu um fio tênue de sangue lhe escorrer
pelas pernas. Aconteceu. Sabia o que era. Haviam lhe explicado. Sentiu-se
extasiada como se um breve sopro de vida lhe tivesse sido concedido assim, de
repente. Um calor morno no peito. Um choque. Sabia que aconteceria. Mas já? Um
medo? Sim. Um medo.
Olhou para as bonecas como se outra pessoa se ocupasse delas agora.
Mas onde abrigaria
essa menina grande que brotara dentro dela? Se só conhecia a
casa da árvore, a amarelinha e o picolé de coco? Talvez pudesse camuflá-la essa
tarde no esconde-esconde com as crianças da rua. Mas não. A achariam. Era
grande a menina. Deu-se conta de que não mais poderia escondê-la. Como um corte
na face. Como um dente que cai.
E gostava do que essa menina? Tinha medo das respostas dela.
Aprenderia a dançar, namorar, mentir, brincar. Seria má essa menina? Sentia
raiva dela. Desse abrir de portas sem bater, escancarando as janelas quase sem
se ferir. Tomando conta de tudo como se sempre estivesse ali.
Então assentiu com leve movimento da cabeça. Já sabia. Moraria ali
mesmo essa menina. Como um sol que rasga o céu preenchendo a noite escura.
Segurou firme a boneca e correu
para casa. Precisava avisar a mãe.